15/10/2009

Sobre Deus e computadores

O COMPUTADOR SALVA… ( VC Não pode deixar de ler esse livro)

Texto de Rubem Alves (Entre a Ciência e a sapiência – Ed. Vozes 2002)

O livro do Apocalipse fala de um animal horrendo a que, na falta de um nome específico para nomeá-lo, dá o nome de “Besta”. cujo número é “666″. A besta é o Anticristo que, com todas as forças satânicas do universo, se defrontará com m exércitos celestiais, na batalha final do Armageddon. Diante de visão tão horrível os conhecimentos da arte da interpretação dos sonhos que aprendi da psicanálise me faltam e fico sem saber o que dizer. Sei que isso é devido à minha incompetência porque fui informado de que várias seitas religiosas, conhecedoras dos demônios, já identificaram a Besta, o Anticristo, o “666”. Criatura infernal e esperta que é, ela esconde suas muitas cabeças e chifres, apresentando-se disfarçada sob a máscara de uma coisa aparentemente boa e inofensiva. A Besta – assim afirmam esses que conhecem o demônio pessoalmente, - é o computador.

Compreendo que vejam a Besta no computador. Diz Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa, que “o que vemos, não é o que vemos, senão o que somos”, com o que a psicanálise concorda. Conclui-se, assim, que o número de demônios vistos do lado de fora é precisamente igual ao número de demônios que moram dentro daquele que os vê.

0 Antigo Testamento conta a estória de uma outra besta, igual a essas que conhecemos, animal modesto e forte, besta de carga, fazedora de trabalhos, cumpridora de ordens. Assim era a besta de um homem chamado Balaão. Pois o dito cujo, havendo ouvido a palavra de Deus, resolveu fazer o contrário, montou em sua besta para ir na direção oposta. Pois não é que o modesto animal voltou-se repentinamente para o seu dono, repreendeu-o em hebraico impecável, e fez com que ele ouvisse a voz de Deus? Os animais e coisas, mudos e sem fala, podem repentinamente se por a falar e se tornar mestres dos que prestam atenção.
O computador, guardas as devidas proporções, muito se parece com o animal de Balaão: é uma besta de carga de que me valho para trabalhar menos, mais rápido e melhor. Pois comigo aconteceu igual, e a minha besta eletrônica, à semelhança da besta de Balaão, começou a conversar comigo assuntos que não são de computador, assuntos sobre os quais ele não conversa com especialistas,. Ele, não o faz porque os técnicos em computação, a semelhança dos relojoeiros que só pensam relógios, só pensam computadores. Como eu nada sei sobre computadores, o computador começou a conversar comigo sobre – pasmem! - teologia! Isso mesmo. Os mesmos computadores que, para uns. são a encarnação da Besta, para mim a encarnação da mansa besta de Balaão, e me falam sobre as coisas de Deus!
Explico-me.
...

Meus sentimentos religiosos se formam assim. Primeiro, é uma alegria diante da beleza da vida. Nada grandioso. Minha alegria cresce de coisas pequenas: um haicai de Bashô, um poeminha da Cecília, uma pecinha de Bach do “Pequeno Livro de Ana Madalena”, café com leite pão e manteiga, a presença tranqüila do cachorro, o gosto e o cheiro do jambo (comi alguns ontem, na fazenda Santa Elisa), o chuveiro quente (lembram-se da cena do primeiro banho do anjo que havia se tornado homem, no filme Cidade dos Anjos?), ficar deitado na rede, o retorno da borboleta…

Amo essas coisas. E o amor não suporta que elas, acabem. 0 amor é sempre uma súplica de eternidade: “Que aquilo que se perdeu me seja devolvido!” Assim reza o amor – sempre… Essa reza é o coração da religião.
E aí eu me dou conta de que essa oração não é só minha. Todas as coisas vivas desejam viver para sempre. É por isso que a natureza inventou um truque de eternidade: cada coisa viva tem, dentro de si, uma passagem de volta. É por isso que as plantas florescem. E por isso que os animais copulam. Todos querem plantar suas sementes. Cada floração e cada cópula é uma súplica de eternidade.
Cada semente de planta ou bicho contém um “programa”, igual aos dos computadores, chamado DNA. 0 DNA de cada coisa viva é a garantia da sua eternidade. Cada semente, lugar do DNA, é um disquete com a receita para que aquilo que morreu venha de novo a vida.

Assombro-me que a natureza tenha inventado tal artifício de eternidade. Se não o tivesse feito, toda a vida ¡á teria desaparecido. E nós? Diferentes dos animais e das plantas. Nos animais e nas plantas o DNA é receita completa: todas as informações estão lá. Mas nós somos diferentes. Nosso programa não esta concluído. Ternos de inventar o que está faltando. Ha, em nossos corpos, um espaço vazio que nos desafia a criar. É o que se chama “liberdade”. A ciência, a poesia, a arquitetura, a música, a culinária, as religiões, a jardinagem, as artes eróticas, o brinquedo: tudo isso são invenções humanas para completar aquilo que falta em nosso DNA. É assim que fazemos o nosso software. a nossa alma.
E eu me perguntei se a natureza, tão cuidadosa em garantir a eternidade dos pernilongos, dos sapos, dos sabiás, dos eucaliptos, dos girassóis e das violetas, não teria um artifício também para garantir a eternidade das coisas belas que inventamos. Seria uma pena se elas se perdessem!
Lembrei-me de que os computadores possuem uma peça chamada “disco rígido”, ou winchester: é o lugar onde as “informações” são “salvas”. Essa palavra “salvar’ pertence ao discurso religioso. Cristo salva! 0 seu contrário é “perder”. Quando uma informação é “salva” ela não se “perde”. 0 texto está vivo na tela. Se eu desligar o computador ele some, morre, se “perde”. Mas, se antes de desligar, eu o “salvar”, então, mesmo com o computador desligado, ele estará preservado na “memória” do computador. Pelo poder da memória do computador os mortos que nela estão “salvos” podem ressuscitar.
Brinquei então com a idéia (de tão louca acho que ninguém ainda a pensou) de que é possível que o universo também tenha um “disco rígido” onde as coisas que vão morrendo ficam “salvas” numa memória cósmica. Assim, nada se perderia. Só que, na minha fantasia, só são “salvas” as coisas que amaram e foram amadas. As outras, que nem amaram e nem foram amadas, são “deletadas”: desaparecem. Assim, tal e qual no computador, aquilo que morreu e foi “salvo” na memória cósmica pode repentinamente ressuscitar…
Qual seria um nome apropriado para esta memória do universo que salva, eternamente, as coisas do amor e apaga, eternamente, as coisas do ódio? Talvez Deus.

Viram? 0 computador me fez pensar fantasias teológicas que ninguém antes pensou. Fico rindo de felicidade enquanto minha bolha de sabão vai subindo…

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